Domingos Simões Pereira nos nossos estúdios no dia 25 de Fevereiro de 2020 (foto de ilustração). RFI/Liliana HenriquesFonte: rfi.fr/pt/ 07/12/2023
Em declarações prestadas nesta quarta-feira ao canal televisivo France 24, o Presidente guineense evocou o momento de crise política atravessado pelo seu país na sequência dos acontecimentos de 1 de Dezembro que ele qualificou de "tentativa de Golpe de Estado" e acusou muito claramente o Presidente da Assembleia Nacional Popular e líder do PAIGC de estar por detrás do sucedido.
Em entrevista concedida à RFI no final desta manhã, Domingos Simões Pereira desmente qualquer envolvimento nestes acontecimentos e acusa Umaro Sissoco Embalo de ter forjado uma crise política para poder dissolver o Parlamento.
Questionado sobre uma informação dando conta da sua convocação amanhã pelo Ministério Público, Domingos Simões Pereira refere não ter conhecimento de uma qualquer notificação.
RFI: Consta que é convocado amanhã para prestar depoimento no Ministério Público. Confirma essa informação?
Domingos Simões Pereira: Até este momento em que falamos, eu não tenho conhecimento de nenhuma notificação e se os dados de quem me acompanha nestas questões estiverem certos, precisariam de pelo menos cinco dias para me notificarem e, portanto, já se está a divulgar lá fora que eu serei ouvido amanhã e até este momento, não recebi nenhuma notificação.
RFI: Na sua entrevista à France 24, o Presidente Umaro Sissoco Embalo acusa-o pessoalmente de estar por detrás dos acontecimentos da semana passada.
Domingos Simões Pereira: é muito triste quando um Presidente da República decide se envolver da forma como Umaro Sissoco Embalo o faz, porque fá-lo de forma irresponsável. Faz afirmações que não prova, diz estar na posse de dados que não divulga e escolhe o caminho do silenciamento das instituições chamando a si todas as instituições para ser ele a arbitrar em causa própria. O Presidente estava fora do país quando tudo isto se produziu e, de acordo com a nossa Constituição, quem deve substituí-lo nas suas ausências, deve ser o Presidente da Assembleia Nacional Popular. Havendo alguma situação de anormalidade, porque é que as instâncias que tiveram essa informação não se reportaram ao Presidente da Assembleia? Reportaram-se directamente ao Presidente que estava fora e terá sido o Presidente da República a ordenar que as forças instaladas no Palácio da República usassem da força para irem resgatar os dois membros do governo. O Presidente Sissoco precisou de produzir essa situação de confronto militar para hoje estar a dizer que estamos em presença de uma grave crise que então justifica a dissolução do Parlamento. Tudo isto foi montado, foi orquestrado e está a ser executado pelo Presidente Umaro Sissoco Embalo.
RFI: O Presidente Sissoco Embalo afirma nessa entrevista ter em sua posse escutas telefónicas entre Domingos Simões Pereira e o comandante Vítor Tchongo.
Domingos Simões Pereira: Eu espero que sejam conversas onde se fala de alguma coisa que ponha em causa a soberania do país e a montagem de uma tentativa de golpe de Estado. Quem me conhece, sabe que esse não é o meu caminho. Eu não tenho qualquer ligação a esse tipo de expedientes. O Presidente diz isso e, portanto, toda a Nação guineense, penso que tanto no país como no estrangeiro, estão ávidos de ouvir essa prova de que o Presidente diz estar na posse. Agora, o que não é aceitável é que o Presidente já tenha feito o seu julgamento, já tenha feito a sua sentença, e agora transfere para uma entidade que é o Ministério Público, que é nomeado por ele, para ir executar as ordens de acordo com aquilo que é a sua conveniência política. Essa é a parte que configura a nossa tal fragilidade institucional.
RFI: Nessa entrevista, o Presidente também justifica a decisão de ter dissolvido o Parlamento de acordo com artigos na Constituição que lhe dariam essa possibilidade em nome da 'Segurança do Estado'. A que artigos se refere?
Domingos Simões Pereira: Aí está. O problema é que ele não cita artigos, precisamente que esses artigos não existem. Em contrapartida, eu vou citar dois artigos: vou citar o artigo 8° que diz claramente que os actos do Presidente da República e de qualquer instância do poder do Estado só são válidos se eles se conformarem à Constituição da República. Depois, vou mencionar o artigo 94° que diz claramente que nos primeiros 12 meses depois da realização das eleições, a Assembleia Nacional Popular não pode ser dissolvida. Mas eu penso que é preciso compreender o que está na verdade a acontecer. Desde as eleições de 4 de Junho deste ano e com a proclamação dos resultados que ditaram a maioria absoluta ao PAI Terra Ranka, o Presidente tem prometido aos seus apoiantes, sobretudo do partido Madem-G15, que iria encontrar alguma forma de poder devolver-lhes o poder. Quem acompanhou o debate na Assembleia Nacional Popular na semana em que tudo aconteceu, na quinta-feira antes de fechar os debates, dois deputados fizeram referência a isso. Fizeram referência ao facto de assim que o Presidente voltasse ao país, iria convocar o Conselho de Estado e iria dissolver o Parlamento. A única questão que nós não percebíamos era qual seria o expediente que ele iria utilizar para esse efeito. Portanto, tanto a retirada dos membros do governo das celas onde se encontravam até ao braço-de-ferro para os recuperar configurou realmente uma montagem para oferecer ao Presidente da República um justificativo que servisse para invocar a tal anormalidade e pretender a dissolução que só não tem efeito porque, de facto, a Constituição não lhe permite.
RFI: Em que situação se encontram actualmente o Ministro da Economia e o Secretário de Estado para o Tesouro? Eles foram novamente presos e têm estado detidos desde a semana passada.
Domingos Simões Pereira: Sim, devem continuar detidos. Não tenho nenhuma informação contrária a isso. O que é algo que todos nós, todos os cidadãos, devemos de facto lamentar porque, não é por serem do meu partido, não é por serem responsáveis, mas estamos a falar de gente que, por exemplo no caso do Secretário de Estado, ele encontrava-se fora do país. Assim que teve conhecimento desse processo, viajou para o país para colaborar com a justiça e foi lá disponível para prestar toda a informação que é necessária para ajudar a trazer a verdade a esse processo. É silenciado, é violentamente arrancado dum sítio para outro e, neste momento, está a sofrer sem provavelmente perceber do que é que se trata. Eu penso que não é disso que a Nação guineense precisa. O que a Nação guineense precisa é que houvesse a investigação do Ministério Público, que houvesse uma comissão de inquérito parlamentar, que houvesse um debate na Assembleia Nacional Popular aonde todos esses dados são colocados na mesa e que todos os cidadãos guineenses possam realmente aceder à verdade e fazerem as suas conclusões. Não é silenciar os ministros, silenciar a Assembleia Nacional Popular, acusar um conjunto de pessoas, chamar a si um conjunto de competências que a Constituição não lhe dá e pretender dissolver o Parlamento para também silenciar o Parlamento. Não, isso não é democracia, isso não é Estado de Direito.
RFI: Sabe-se do que é que o Ministro da Economia e o Secretário de Estado do Tesouro são acusados concretamente?
Domingos Simões Pereira: Eu sei porque foi essa acusação que motivou a sua convocação para a Assembleia Nacional Popular. Houve uma carta do Ministro da Economia e Finanças a um banco da nossa capital na qual o Ministro reconhece a dívida de um conjunto de operadores privados. Isso foi entendido como uma utilização indevida de recursos públicos e é isso que estava sob investigação. O interessante é que neste caso, o Ministro explicou-nos a razão de ter feito essa operação, dizendo que há um acordo com o FMI que estabelece a data de 31 de Dezembro deste ano como data-limite para o Estado alienar a sua participação nesse banco e que, portanto, decorre dessa disposição o Estado estar a eliminar o conjunto de dívidas que tem com privados que têm dívidas com o banco. Essa é a explicação. Não estou a dizer que está certa, não estou a dizer que é conclusivamente neste sentido. Agora, o que é estranho é que essa mesma operação já tinha sido feita ainda em 2023 pelo governo anterior, em 2022, em 2020 e em 2019, utilizando os mesmos procedimentos, as mesmas leis, os mesmos mecanismos. Porque é que isso não é investigado e não é objecto de um processo judicial?
RFI: O Presidente da República disse na entrevista à France 24 que daqui a uns dias vai nomear um novo governo interino que lhe vai propor uma nova data para eleições legislativas antecipadas. O que é que vai fazer no caso de efectivamente ser marcada uma nova eleição legislativa?
Domingos Simões Pereira: O Presidente não quer eleições. Não é eleições que o Presidente quer. Nós estamos a sair de eleições há poucos meses. Saímos de eleições em Junho. O povo se pronunciou e, portanto, não há dúvidas sobre aquilo que é o pronunciamento do povo. O problema do Presidente não é realizar eleições. O problema do Presidente é governar tal como o fez desde 2019, com um governo da sua iniciativa e que a Constituição não lhe dá. Já em Junho de 2023, o Presidente dizia e prometia aos seus correligionários que iria encontrar alguma forma de eliminar a governação do PAI Terra Ranka para incluir na sua governação elementos do seu partido, o Madem-G15, e é o que eles têm reivindicado. Portanto, ele criou a tal situação de anormalidade para chamar a si a competência de dissolver o parlamento. Dissolvido o parlamento, eles não precisam apresentar o programa e, portanto, vai apresentar um governo de iniciativa presidencial que vai governar por tempo indeterminado, enquanto puder 'forçar a barra', fazer fuga para a frente e não respeitar as instituições da República.
RFI: Há dias, disse que a decisão do Presidente de dissolver o parlamento era contrária à Constituição. Nestas circunstâncias, o que é que pretende fazer enquanto Presidente da Assembleia Nacional Popular?
Domingos Simões Pereira: A Assembleia Nacional Popular tem que continuar o seu funcionamento porque já citei duas normas, o artigo 8° e o artigo 94°. É tão evidente e tão clara a interpretação que se deve dar que a única implicação disso é que esse decreto é inexistente. Inexistente o decreto, significa que a Assembleia Nacional Popular deve continuar a trabalhar. Só não o está a fazer porque há forças lá colocadas que estão a impedir o acesso dos deputados e mesmo dos funcionários, o que é outra aberração porque mesmo que admitíssemos a possibilidade de o parlamento estar dissolvido, as comissões deviam continuar a trabalhar. A mesa, a comissão dos líderes e a comissão permanente. O estacionamento de forças que não estão sob a jurisdição do Presidente da Assembleia é mais do que uma evidência do golpe de força, do Golpe de Estado, que se pretende dar a nível dessa instituição.
RFI: Dentro de alguns meses, termina oficialmente o mandato do Presidente da República. Deveriam ser organizadas eleições presidenciais. Como antevê estes próximos meses na Guiné-Bissau?
Domingos Simões Pereira: Todo este debate, todo este quadro que se está a desenhar tem a ver com a questão das eleições presidenciais. O Presidente tem consciência da sua falta de popularidade, tem consciência de que tem poucas probabilidades de sair vencedor das próximas eleições presidenciais e aposta no único expediente que ainda está à sua mercê que é eliminar toda a concorrência, não permitir que Domingos possa ser seu concorrente nas próximas eleições. Já havia afirmado num primeiro momento que as eleições só teriam lugar em Novembro de 2025, o que ninguém entendeu porque, de acordo com a nossa Constituição, mesmo que simbolicamente, fraudulentamente, tiver tomado posse -ele tomou posse no dia 27 de Fevereiro de 2019- e portanto feitas as contas até ao dia 27 de Fevereiro de 2025, o novo Presidente da República devia tomar posse. O que significa que devemos ter eleições entre Outubro, Novembro, ou no mais tardar até Janeiro de 2025. O Presidente não quer isso, não quer concorrência, acha que não tem condições de concorrer em pé de igualdade com os outros e, portanto, monta toda esta cabala para dissolver o parlamento, para nomear um governo da sua iniciativa, não permitir que a nova CNE possa ser estruturada e possa haver eleições livres e transparentes na Guiné-Bissau. é perante isso que a comunidade internacional, sobretudo aquela que é mais próxima e parceira da Guiné-Bissau, não pode ficar calada porque é responsável por este acompanhamento e por reforçar as instituições democráticas deste país.
RFI: A comunidade internacional tem sido bastante cautelosa desde o começo destes acontecimentos. Domingos Simões Pereira disse designadamente que Portugal não tem propriamente contribuído para a estabilização da situação na Guiné-Bissau. Tem havido reacções de vários quadrantes, nomeadamente da CEDEAO que condenou a violência, a CEDEAO que tem contingentes na Guiné-Bissau. O que é que espera neste momento da comunidade internacional?
Domingos Simões Pereira: Eu devo lembrar que este final de semana, concretamente no Domingo, haverá uma cimeira da CEDEAO em Abuja. Eu vejo isso como uma oportunidade dos chefes de Estado da CEDEAO olharem com mais cautela a essas declarações, compreenderem que quando fazem referência à violência, têm que admitir a possibilidade dessa violência estar a ser promovida exactamente por aquelas entidades que eles pretendem defender. Portanto, há aqui esclarecimentos que são muito importantes, mas eu penso que todos os dados estão na posse dos elementos da CEDEAO e de outras organizações e eu acredito que, desta vez, eles vão querer esclarecer e tomar uma posição bastante mais clara e bastante mais contundente. Já que referiu Portugal, eu gostava de esclarecer porque parece que há aqui uma tentativa de ofuscar aquilo que eu disse. Eu afirmei que o Presidente Embalo faz referências e fez referências publicamente em várias ocasiões de consultas que ele faz a várias entidades nomeadamente ao Presidente da República de Portugal que, quando essas afirmações não são desmentidas, acaba configurando em certa medida uma cumplicidade com aquilo que ele diz. Eu vou produzir essas provas nas quais o Presidente faz referência a ter consultado determinadas entidades. Eu, em nenhum momento, afirmei que essas entidades estavam de acordo com aquilo que estava a acontecer no nosso país. Contudo, eu reafirmo que os laços que ligam os nossos países e a influência que um país como Portugal tem na realidade política da Guiné-Bissau transforma-o num parceiro quase que incontornável a acompanhar a situação interna e garantir que não há aproveitamentos indevidos de uma relação institucional que certamente todos nós compreendemos e respeitamos.
Por: Liliana Henriques