terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

BAMBADINCA: A VILA ILUMINADA

Noutros países da África Ocidental os geradores são um problema ambiental. Na Guiné-Bissau não. Apenas 5,1% da população tem dinheiro para ter um gerador.
Na Guiné-Bissau, uma organização não governamental portuguesa construiu uma central fotovoltaica capaz de fornecer eletricidade a oito mil pessoas.

Num país onde a natureza é o maior tesouro, a utilização de energia limpa, do sol, é o modelo a replicar, dizem especialistas de várias áreas. O governo, porém, parece não ouvir. A cerca de cem quilómetros, quer desmatar uma floresta protegida para construir uma central termoelétrica, colocando em risco a maior reserva de água doce do país.

São seis da tarde e o sol desaparece em Bambadinca. Ao longe, um homem avança por uma picada de terra vermelha. Vai de chinelos e veste uma buba azul-bebé. O tecido largo flutua-lhe em volta como um pedaço de céu soprado, um rasgo de luz agora que a penumbra começa a espalhar-se sobre as pessoas e animais, sobre os autocarros apinhados, a confusão de táxis e carroças, motos e vendedoras de fritos, sobre as nuvens de pó e música, o troar dos motores e todo o vaivém de crianças e adultos no comércio de beira de estrada.

A 120 quilómetros de Bissau, Bambadinca é uma vila com oito mil pessoas no cruzamento entre uma estrada de alcatrão esburacado e uma estrada de terra batida.
Latas de leite em pó e conservas, pacotes de bolachas e sacos de farinha, café, margarinas, óleos – tudo em torres do chão ao teto, cada pequena loja com a sua lâmpada única a oscilar do teto na ponta do fio, quase sempre fraca, quase sempre a espalhar mais sombras do que claridade.

Na região de Bafatá, 120 quilómetros a leste da capital Bissau, Bambadinca é um cruzamento com oito mil pessoas. Literalmente: Bambadinca irradia do cruzamento entre uma estrada de alcatrão esburacado e uma estrada de terra batida, como as que cruzam a maior parte do país – em volta, acumulam-se as casas de adobe com telhados de zinco e pequenos alpendres onde as famílias se sentam a descansar e a conviver, por vezes a cozinhar e a rezar.

Nos primeiros dias de dezembro, as temperaturas já deviam ter reduzido, mas o calor abafa. Várias mulheres da família de Abulai Bilai estão sentadas à porta das duas casas partilhadas pelo agregado de mais de uma dúzia de pessoas. Uma das mulheres, muito jovem, amamenta um bebé. Há crianças a jogar futebol e gritos de felicidade por causa de uma bicicleta, vários miúdos empilhados em cima e constantemente a cair em volta. As gargalhadas ecoam, mas Abulai Bilai não sorri.

Centro Comunitário, noite de sexta-feira, novela brasileira na televisão. As ruas em redor estariam às escuras não fosse a luz projetada das janelas abertas.
Abulai é inspetor de educação, um funcionário público em topo de carreira. Há dez anos que ganha o mesmo: 65 mil francos CFA. São sessenta euros. O dobro do salário mínimo nacional. Mas a dividir por um agregado de 14 pessoas em que apenas duas são assalariadas. E num país onde o próprio Estado se atrasa regularmente nos pagamentos. Agora, por exemplo, vamos no nono dia de dezembro e Abulai ainda não recebeu novembro.

«Considerava ser classe média se o meu salário chegasse a meio do mês», explica zangado. Não chega. E as contas estão feitas: para sobreviver do salário, teria de ganhar pelo menos 114 mil francos CFA – 105 euros. «Pelo menos», repete ele. Ele que, além da mulher e dos filhos, tem a cargo os filhos órfãos de uma irmã. Um agregado a que se junta um irmão com um segundo salário mas também a sua mulher e filhos. Na Guiné é raro um trabalhador viver de apenas um salário.

Normalmente, cada assalariado tem vários empregos e cada família diferentes fontes de rendimento, em diferentes tabuleiros da economia, nomeadamente a paralela, que é a primeira economia nacional. Na família de Abulai, até há pouco, as mulheres cozinhavam para fora. Deixou de ser rentável. Ficaram os salários. E cortaram- se custos. É por isso que a família tem contador e acesso à rede elétrica mas raramente tem eletricidade. «Não temos estofo para manter a luz acesa. Temos um frigorífico, mas não funciona há três meses – está desligado. Não podemos.» Sem eletrodomésticos, Abulai diz que pagaria 41 mil CFA mensais – são mais de 62 euros apenas em lâmpadas acesas.

Na casa de Abulai Bilai, a família tem contador e acesso à rede elétrica mas raramente tem eletricidade. Não há dinheiro. «Temos um frigorífico desligado há três meses».
HÁ MUITO QUE SE CONHECE O PAPEL da eletricidade no crescimento dos países. Mais recentemente, o seu papel na luta contra a exclusão e a pobreza das famílias começou também a ser reconhecido. Mas a eletricidade é um problema na Guiné-Bissau. Em crioulo diz-se «lus bai, lus bin». «Luz vai, luz vem.» Na Guiné-Bissau, a eletricidade é um bem caro e escasso. Onde existe, é também um imponderável: mesmo em Bissau, onde vive um quarto dos menos de dois milhões de habitantes do país, raramente são asseguradas 24 horas de energia. Num momento há luz, no seguinte não.
«Lus bai, lus bin». «Luz vai, luz vem», em crioulo. A eletricidade é escassa e pouco fiável. Quase todos os dias as lâmpadas se apagam.
«Lus bai, lus bin», porque quase todos os dias as lâmpadas se apagam, os computadores e os frigoríficos se desligam, as ventoinhas e os ares condicionados deixam de funcionar e os rooters de internet cortam ligação ao mundo. A não ser que haja um gerador a postos, a encher o ar de fumos e ruído enquanto queima gasóleo. Noutros países de África Ocidental os geradores são um problema ambiental, na Guiné-Bissau não. Na Guiné-Bissau estima-se que 65% da população viva abaixo do limiar de pobreza – os geradores ficam ao alcance de poucos, apenas 5,1% da população. Na Guiné-Bissau, a maioria simplesmente não tem energia elétrica – usa velas e pilhas, cozinha a lenha e a carvão.

Na verdade, na Guiné-Bissau, não há sequer uma verdadeira rede pública de eletricidade – há diferentes soluções regionais. Ao contrário do que acontece no vizinho Senegal, por exemplo, não existe também uma política energética para as zonas rurais.

Estima-se que entre 1970 e 1990 os programas de eletrificação de zonas rurais tenham levado eletricidade a cerca de oitocentos milhões de pessoas em todo o mundo. Ainda assim, dois mil milhões foram deixados para trás. Entre eles, grande parte dos guineenses. Até 2013, estima-se que a rede elétrica chegasse a apenas 21% da população – 6% nas zonas rurais, 37% nas urbanas. Apenas o ano de 2015 trouxe melhorias a este quadro [ver caixa].

FOI PRECISAMENTE ATÉ ESSE ANO que Luís Vaz Martins presidiu à Liga Guineense dos Direitos Humanos. «Não encontro sociedade alguma que se tenha desenvolvido sem energia. Com energia consegue-se acesso a água de melhor qualidade, conservam-se melhor alimentos e medicamentos, facilita-se a transformação de produtos agrícolas para consumo doméstico e exportação. Sem energia não há investimento privado, muito menos industrialização», diz o especialista. Foi o tipo de temas que a ONGD portuguesa Tese foi buscar para a promoção do seu Bambadinca Sta Claro, uma iniciativa pioneira de energias renováveis que levou à construção da primeira central fotovoltaica da Guiné-Bissau, em 2011.

A microrrede de 1248 painéis solares ficou conclu´´ida em 2015. Custou dois milhões de euros, geridos pela Tese, uma ONGD portuguesa.
A expressão significa «Bambadinca está iluminada» – iluminada com energia limpa, do sol, através de uma microrrede de 1248 painéis. O projeto foi concluído em 2015, quando o Serviço Comunitário de Energia de Bambadinca foi inaugurado e a Tese o passou à gestão da comunidade. As autoridades locais receberam pronta uma central de dois milhões de euros custeada a fundo perdido pela União Europeia, a Cooperação Portuguesa e as Nações Unidas – teve ainda apoio da Direção-Geral de Energia portuguesa, da ONG guineense Divutec, da Universidade de Lisboa e dos ateliers de arquitetura Pedro Novo e AP.art.

Bambadinca não vinha assim da escuridão mas quase: entre 1983 e 2006 estivera ligada à central de Bafatá, em 2006 esses geradores deixaram de funcionar e a única solução passou a ser a ligação à cidade de Badora, com custos que praticamente ninguém podia suportar. Com a chegada da Tese ao terreno os problemas avolumaram-se: uma mãe contabilizava seis velas diárias para os filhos estudarem; um carpinteiro dizia que em pleno século xxi usar apenas plainas de mão era «como trabalhar num buraco».

Nessa altura, a população desconhecia que tipo de condições viria a ter com a sua central. Mas pouco depois havia já planos em ação: uma mulher decidira comprar um frigorífico e montar um negócio de sorvetes e água fresca – com o lucro previa pagar a eletricidade para os filhos estudarem, a televisão com que lhes mostraria mundo e as ventoinhas com que afastaria os mosquitos, portadores de doenças. Esta mãe chama- se Dilan Fati. É uma das duas mulheres de Abibu Fati, um motorista profissional, responsável sindical da região.
Dilan Fati montou um negócio de sorvetes e água fresca. Com o lucro paga a eletricidade para os filhos estudarem.
Aos 51 anos, Abibu tem um salário de 62 mil CFA, 94,5 euros. A casa da sua família tem dois frigoríficos, uma ventoinha e sete lâmpadas. Com tudo a funcionar todos os dias diz que pagaria um salário. Como Abulai, o inspetor de educação, queixa-se do que considera custos demasiado elevados. É como ter um supermercado de luxo na zona, dizem: «Ficávamos contentes, mas não podíamos pagar.»

Abibu faz contas aos pequenos sorvetes de sumo de cabaceira: cada um rende cem francos (um cêntimo) – o mesmo que pequenas lojas por todo o lado cobram para carregar um telemóvel. Normalmente, serão 1500 a 2000 CFA (dois a três euros) de rendimento mensal. Em dezembro será menos: aqui o consumo energético é pré-pago; carregam-se cartões para inserir no contador – há três dias que a central tem um problema de software, há três dias que a família de Abibu está sem eletricidade.

É noite quando chegamos à central, um pequeno edifício pintado de verde-garrafa e um descampado com os 1248 painéis que, durante o dia, recolhem e transformam a energia solar. Dja Seidi, o responsável, recebe- nos no alpendre iluminado por uma lâmpada fluorescente branca. Em volta uma nuvem de mosquitos ferozes. «As pessoas esquecem-se de que o papel do Estado seria garantir a energia que esta central produz», diz quando confrontado com a insatisfação popular. «E que nesta região têm de pagar o custo total da eletricidade.»

Bambadinca não vinha assim da escuridão mas quase: entre 1983 e 2006 estivera ligada à central de Bafatá, em 2006 esses geradores deixaram de funcionar e a única solução passou a ser a ligação à cidade de Badora, com custos que praticamente ninguém podia suportar.
É que em Bambadinca, ao contrário do que acontece em Bissau, o Estado não comparticipa custos. O que faz uma população já com menos dinheiro pagar mais pelos serviços. E a assimetria é grande. Malam Biai, que nasceu e cresceu em Bambadinca e é operador de câmara da RTP em Bissau, diz que, na capital, tem ar condicionado e, mesmo assim paga apenas 20 mil CFA (30 euros) mensais – metade do que Abulai Bilai diz que gastaria em apenas iluminação.

«A gestão da eletricidade na Guiné é muito política», diz Sara Dourado. A responsável pelo setor energético da Tese não se surpreende com as reclamações em Bambadinca. Correspondem a um problema de «gestão de expetativas». E os números parecem dar-lhe razão.
Com eletricidade em Bambadinca, as pessas reúnem-se à noite e é mais seguro circular nas estradas.
Em Bambadinca, 650 famílias têm hoje contador – dez vezes mais do que as 65 famílias de antes da construção da central.Mas é difícil estimar quantas usam energia regularmente – os valores são demasiado flutuantes, oscilando à medida dos rendimentos sazonais da zona.

Depois da época do arroz, a época das chuvas é sempre de carência e as famílias entram em contenção. Já na época do caju, quando há mais dinheiro a circular, os consumos sobem. As vendas aumentam também, por exemplo, às segundas-feiras, dia de mercado.


É SEXTA-FEIRA E MALAM abre caminho até ao centro comunitário onde dezenas de habitantes assistem a uma novela brasileira. As ruas são estreitas e de terra batida. Estariam às escuras se não fosse a luz das lojas que agora ficam abertas até à meia-noite. Isso já torna a vida melhor, nomeadamente para as mulheres, que antes recolhiam mais cedo. Mas essa parece ser uma memória distante. A população agora quer mais.

É no edifício da central que se carregam os cartões pré-pagos que se inserem depois nos contadores de eletricidade nas casas. Quando o software vai abaixo, não se carrega o cartão. E não há luz.
«As pessoas estão revoltadas», diz o líder comunitário Mamadou Iero Ba. Em Bambadinca, a chegada deste homem é uma visão – quando tudo em volta é noite e gente a caminhar entre o pó, a sua moto cromada parece um luxo. Ele diz que é «apenas um homem à procura de diálogo». Que parece surpreendido quando lhe perguntamos se as reivindicações não deveriam dirigir—se ao governo.


Mamadou não parece ciente de a sua vila ser hoje vista como o modelo a replicar por todo o país. Bambadinca é, neste momento, talvez o único sítio do país com 24 horas de luz por dia. Assim encontre a população meios para a pagar. Mas isso a central não pode resolver. Agora, por exemplo, são oito da noite. Estamos sentados junto à casa de Abibu e continuamos a ouvi-lo, mas deixámos de tomar notas – já não se vê para escrever.

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