Fonte: Ciro BatchikannAMÍLCAR CABRAL (1924 – 1973)
Amílcar Lopes Cabral nasceu em Bafatá (Guiné-Bissau) a 12 de Setembro de 1924 e morreu em Conacri, a 20 de Janeiro de 1973.
«Ilha: teus montes e teus vales não sentiram passar os tempos e ficaram no mundo dos teus sonhos— os sonhos dos teus filhos — a clamar aos ventos que passam, e às aves que voam, livres, as tuas ânsias!» (AC,1945)
Optámos por adicionar dois contributos relevantes para uma biografia do poeta, agrónomo e “Chefi di Guerra”, que cunhou a história da Guiné e Cabo Verde, lutando contra o colonialismo português. São dois textos: parte de um artigo de um jornal com o testemunho de Manuel Alegre (2013) e uma crónica de Diana Andringa (1993).
1. À uma hora do dia 12 de Setembro de 1924 nascia em Bafatá, na então Guiné Portuguesa, Amílcar Lopes Cabral, filho de um professor primário cabo-verdiano e de mãe guineense. Aos 8 anos de idade muda-se com a família para a ilha de Santiago, Cabo Verde. Frequentou o liceu Gil Eanes, em S. Vicente, onde completa, em 1944, os seus estudos secundários. Recordando os seus tempos de escola Cabral dirá: “Gosto muito de Portugal, do povo português. Houve um tempo na minha vida em que eu estive convencido que era português. Mas depois aprendi que não, porque o meu povo, a história de África, até a cor da minha pele…Aprendi que já não era português”.
Amílcar tem 15 anos quando se inicia a Segunda Guerra Mundial que terá impactos dramáticos em Cabo Verde. Nos anos quarenta Cabo Verde era uma colónia varrida pela fome e pela morte. A fome, que vitimou dezenas de milhares de pessoas, inspirou Cabral a escrever o seu primeiro conto, “Fidemar”. Neste conto revelava o desejo de partir e voltar para libertar o seu país. A história acabava de forma trágica com o salvador da pátria a morrer afogado numa batalha naval.
Não apenas a escrita e as preocupações sociais ocupavam o jovem Cabral. Amante de Futebol, em S. Vicente, Amílcar foi secretário do “Boavista Futebol Clube” entre 1944-45. Manuel Alegre recorda: “Ele era um homem com um grande sentido de humor, ele dizia que o seu desejo maior era ter sido ponta esquerda do Benfica ou chefe de uma orquestra do morro, mas que as circunstâncias o tinham transformado enfim no dirigente da luta armada”.
Após terminar o liceu em São Vicente, Amílcar Cabral obtém uma bolsa de estudo da Casa dos Estudantes do Império e inicia os seus estudos universitários em Lisboa no Instituto Superior de Agronomia.
A guerra tinha acabado pouco antes na Europa quando Cabral, então com 21 anos, desembarcou no Cais de Alcântara no Outono de 1945. O Portugal ao qual o jovem africano chega atravessa um momento de agitação sócio-laboral sem precedentes no Estado Novo. A derrota do nazismo alimenta as esperanças da oposição portuguesa de que ventos de mudança cheguem ao país.
No Instituto de Agronomia distingue-se como aluno e jogador exímio de futebol. O Benfica chegaria a convidá-lo para jogar no clube. Nos tempos livres o jovem caloiro dá aulas nocturnas de alfabetização aos operários de Alcântara.
Os interesses do jovem Cabral iam muito para além da Agronomia e do futebol. Nos seus anos em Lisboa destaca-se pelas actividades políticas e culturais desenvolvidas na Casa de África, na Casa dos Estudantes do Império - da qual foi vice-presidente entre 1950 e 1951 – e no Centro de Estudos Africanos. Cabral dirá: “Eu fui fiel à Pátria portuguesa lutando ao lado do povo português contra o salazarismo. Cantando nas ruas de Lisboa, abrindo brechas entre a polícia, na Rua Augusta, aquando da eleição de Humberto Delgado. “Lutei pela Pátria portuguesa sem ser português.”
Apresenta a tese de final de curso, em 1952, sobre a erosão dos solos agrícolas, a partir de uma investigação no concelho de Cuba (no Alentejo). Nesse mesmo ano regressa à Guiné, assumindo o cargo de Director do Posto Agrícola Experimental de Pessubé, em Bissau.
Enquanto procede, acompanhado pela mulher, ao recenseamento agrícola da Guiné, Cabral já adquirira uma longa aprendizagem sobre o que faziam as organizações nacionalistas e cívicas de Angola, já se relacionara com Lúcio Lara, Mário de Alcântara Monteiro e Viriato da Cruz, entre outros. Dirá mais tarde que a sua ida para a Guiné tinha sido programada já com a ideia de fazer alguma coisa, de dar uma contribuição para levantar o povo contra os tugas. Amílcar Cabral sabia muito pouco sobre a Guiné, foi o recenseamento agrícola que lhe deu a conhecer em grande profundidade a realidade local: 99.7% da população não gozava na plenitude dos direitos civis e políticos.
Face ao seu envolvimento nos movimentos anti-colonialistas em 1955 é aconselhado a abandonar a Guiné. Regressa à metrópole e até final de 1959, reside em Lisboa, desempenhando contudo um conjunto de actividades em Angola, nomeadamente participando na formação do MPLA.
Numa visita à capital guineense a 19 de Setembro de 1956, propõe a formação do Partido Africano da Independência (PAI), que esteve na génese do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), uma organização de luta que se propunha libertar os dois povos do colonialismo português. Agindo na clandestinidade durante os 3 primeiros anos da sua existência, o PAIGC teve um papel de destaque na organização da greve nas docas do cais de Pidjiguiti, em 1959. A repressão violenta dos trabalhadores portuários pela PIDE, a polícia política portuguesa, será o momento que decidiu o início da luta armada.
A 23 de Janeiro de 1963, após uma série de propostas de conversações apresentadas ao Governo Português e através da ONU, desencadeia a sul do território, a luta armada de libertação nacional. Numa entrevista à televisão francesa, concedida em Conacri, Cabral explica o porquê da independência “A independência para quê?’ Sim, a independência para quê? Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo. Salazar dizia que a África não existe sem os Europeus. É um exagero. Nós consideramos que a nossa independência permitirá desenvolver a nossa cultura, desenvolver-nos a nós mesmos e ao nosso país. Levando o nosso povo a sair da miséria, do sofrimento, da ignorância, porque este é o estado onde nos encontramos após 500 anos de presença portuguesa”.
O pai da nacionalidade guineense não assistiu a independência. A guerra iniciada em 1963 com o ataque ao quartel de Tite avançou rapidamente até 1967, mas depois há um impasse. Nessa altura ele procura obter um estatuto jurídico internacional que permita ao país ser reconhecido. Cabral tem clara noção da importância da frente diplomática, por isso desdobra-se em viagens à procura de apoios, militares, financeiros ou humanitários: Conseguiu o apoio da China, da União Soviética, de Cuba mas também de governos de países ocidentais como a Suécia, a Noruega ou a Finlândia.
Com os apoios do exterior e a mobilização da população a Guine já via ao fundo a luz da independência. Marcos importantes da sua afirmação internacional são a audiência com o Papa Paulo VI em 1970 e em 1972 a sua intervenção no Conselho de Segurança reunido em Adis-Abeda, na qual realiza um apelo à ONU no sentido de enviar uma missão de visita às regiões libertadas.
Esta missão das Nações Unidas viria a realizar-se entre 2 e 8 de Abril de 1972 e contribuiu para o reconhecimento internacional do PAIGC como representante legítimo do povo da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
. TESTEMUNHO DE MANUEL ALEGRE
"Amílcar Cabral foi em meu entender o mais inteligente, o mais criativo e o mais brilhante de todos os dirigentes da luta de libertação dos povos africanos colonizados naquela altura pelo regime português", afirma Manuel Alegre. O poeta, político português Manuel Alegre recorda-se de um dia em Argel, onde o português estava exilado, Amílcar Cabral ter puxado os óculos para a testa, como era seu hábito, e com os olhos rasos de lágrimas ter dito: “Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido, provavelmente fundador, ainda que guiado pelo inimigo”. Cabral pressentia o perigo e presságio confirmou-se. Foi assassinado, aos 48 anos, por três homens armados do PAIGC, o seu partido, perto da sua casa em Conacri.
Até hoje as circunstâncias da morte estão por esclarecer. Inocêncio Kani, companheiro de luta de Cabral deu o primeiro tiro, outro, ainda não identificado, deu-lhe os tiros de misericórdia. Também não há uma verdade quanto à autoria moral do crime: um plano da PIDE, a polícia política portuguesa? Divergência no seio do partido? Conflito de interesses na Guiné-Conacri? Morrer é uma das condições da guerra de qualquer combatente. Amílcar Cabral era um alvo privilegiado, pela sua acção, mas sobretudo pelo seu pensamento.
No seu livro de memórias, “A Ponta da Navalha”, o jornalista francês Gérard Chaliand, que acompanhou e divulgou a Luta de Libertação na Guiné-Bissau, conta que quando disseram a Nelson Mandela “tu és o maior”, Mandela replicou com toda a simplicidade, “não o maior é Cabral”. Manuel Alegre salienta que Cabral foi assassinado, “porque não tinha consigo nenhuma arma, ele que era o principal teórico da luta armada africana de libertação”. Foi a primeira morte de Cabral.
“Foi um homem que sempre procurou negociar, foi um chefe de guerra mas nunca gostou da guerra e esteve quase a consegui-lo antes de ser assassinado e sempre foi um homem que disse que o inimigo não era o povo português que o povo português era aliado principal do povo da Guiné e de Cabo Verde. Dizia que a luta de libertação é um acto de cultura e dizia esta coisa curiosa: na luta anticolonialista o colonizado liberta o colonizador. Isto não foi apenas uma frase porque na verdade teve consequências para a própria luta pela liberdade em Portugal. «Muitos dos dirigentes que fizeram a nossa Revolução dos Cravos, muitos dos militares que depois formaram o Movimento das Forcas Armadas estiveram na Guiné e lutaram contra o PAIGC e acabariam por assimilar os princípios teórico-políticos de Cabral”.
Em Janeiro de 1973 a luta prosseguia com crescente dificuldade para as tropas portuguesas. Contam antigos guerrilheiros que Cabral gostava de acompanhar com um binóculo os combates em Madina do Boé. Fora da Guiné era um homem respeitado, reconhecido com um grande dirigente africano. Mantinha o seu repúdio pela violência, opôs-se sempre ao terrorismo e qualquer ataque contra civis, e continuava a acreditar no diálogo. Isso poderá ter ditado a sua morte. A 20 de Janeiro de 1973 face aos que pretendiam amarrá-lo resistiu. “É por isso que eu luto, para que deixem de amarrar as pessoas”. Disse que preferia ser morto a ser amarrado.
O pai da Guiné-Bissau não assistiria ao seu nascimento como Nação e desde então os seus ideais têm sido muitas vezes traídos, numa multiplicidade de mortes póstumas. A escritora e antiga ministra guineense Odete Semedo salienta: “Ele dizia que se a independência não se traduzir no bem-estar do povo, então as palavras serão vãs e hoje são palavras vãs. Nós traímos a maré como diz a canção".
(Parte de um artigo de Helena Ferro de Gouveia)
CRÓNICA DE DIANA ANDRINGA
Para a gente que, no início dos anos 60, frequentava a Casa de Estudantes do Império – e, depois do seu fim, se refugiou nos cafés mais próximos, como a Mimo ou o Rialva, o nome de Amílcar Cabral surgia como quase mitológico. Talvez por isso, pelas conversas e histórias em seu redor, a sua morte causou-me, não só a natural indignação perante o assassínio de um grande dirigente, mas também a mágoa de quem perde um amigo que não chegou a conhecer. Por tudo isso, Amílcar Cabral e os factos do 20 de Janeiro surgiam, naturalmente, sempre que falava com gente que com ele se tinha cruzado, no PAIGC. Dessas conversas se tece este relato:
“Quando o conheci, numa casa da Rua Actor Vale, em Lisboa, não o associei a esse Amílcar Cabral de cujo trabalho na Guiné já tínhamos ouvido os ecos. O engenheiro que me apresentaram não parecia capaz de fazer nada disso…”
Ana Maria Cabral riu-se, quando me contou esta história, em Cabo Verde, há já alguns anos. Ri-me também: porque já ouvira comentários semelhantes, mas também porque talvez fosse essa qualidade, fazer sem tornar evidente que fazia, que lhe tivesse permitido estar entre a escassa dezena e meia de guineenses a ascender a um curso superior, em Portugal. Talvez fosse ainda essa qualidade que lhe permitiu, durante dois anos, correr a Guiné de lé a lés, na sua qualidade de agrónomo: fazendo um trabalho científico (que seria depois publicado pela Imprensa Nacional), mas também adquirindo um conhecimento que esteve na base da luta vitoriosa do PAIGC, semeando ideias, cultivando cumplicidades. Até que finalmente o disfarce caiu e foi proibido de permanecer na terra natal, onde só era autorizado a entrar uma vez por ano, para uma curta visita a sua mãe.
Nessa altura tinha já uma ideia muito clara sobre os problemas que levantaria, à luta de libertação, a existência de múltiplas etnias, sem laços entre si. Mas dizia: “É com esta gente, como ela é, que temos de fazer a luta. Será a própria luta que os fará avançar.” Conseguiu assim que os Balantas, depois de combaterem no seu próprio terreno, admitissem ir dar uma mão aos Fulas, no chão destes. Tal como deixou que fosse a prática a combater as superstições: “Se um chefe está tão carregado de amuletos que precisa de carregadores para o ajudar a transportá-los e, por isso, não se precipita para o abrigo em caso de bombardeamento e morre, e outro sem amuletos, que está no abrigo, escapa, as pessoas começam a perceber que é o abrigo o melhor dos amuletos…”
Pacientemente: como convenceu os pais, mesmo os de religião muçulmana, que as filhas, como os filhos, deveriam estudar. Como conseguiu impor, nos Comités das áreas libertadas, a presença de mulheres. Mesmo se teve de aceitar que as combatentes se limitassem à defesa das tabancas, na milícia.
Foi dele, do engenheiro agrónomo conhecedor dos diferentes povos da Guiné, que veio a palavra de ordem que se seguiu ao massacre de Pidjiquiti: deslocar a luta para o campo, proceder à mobilização dos camponeses. Uma palavra de ordem que, aquando do seu assassinato, a 20 de Janeiro de 1973, estava à beira de dar os seus frutos, com a proclamação da independência.
“O nosso Exército não é composto por militares, mas por militantes armados”, dizia ele, mais palavra menos palavra, numa velha entrevista que recuperei para uma série para a RTP, “Geração de 60”. “E quando conseguirmos o nosso objectivo, a independência, esses militantes voltarão para as suas terras, a lavrar os campos.”
Em Janeiro de 73, a vida parecia sorrir a esse engenheiro agrónomo que, segundo um antigo guerrilheiro, seguia muitas vezes, de binóculo, sobre um morro próximo, os combates em torno de Madina do Boé. No terreno, a luta prosseguia com crescente dificuldade para os portugueses. No exterior, era reconhecido como um grande dirigente africano. (Não fora ele, com outros dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, recebido pelo Papa, num genial golpe de propaganda que deixou profundamente nervosas as autoridades da “nação fidelíssima”?) As suas ideias sobre a independência continuavam claras e precisas. Sabia que outras tinham corrido mal, mas isso não o intimidava. Numa outra entrevista, utilizada na mesma série, afirma: “Muitos países se tornaram independentes e ouvimos muitas vezes esta frase: ’A independência para quê?’ Sim, a independência para quê? Para nós, em primeiro lugar, para sermos nós próprios. Para sermos homens africanos, com tudo o que nos caracteriza, mas caminhando para uma vida melhor, e que nos identifique, cada vez mais, com os outros homens no Mundo.”
Descreveram-mo firme, inteligente, respeitado pelo seu povo (junto do qual, embora membro da ínfima minoria que acedera à educação, se movia como peixe na água), enfim, o tipo de inimigo que nenhum império deseja enfrentar. Por isso, concluíram, como Roma gizou a morte de Viriato, Lisboa iria gizar a morte de Amílcar Cabral.
“Devíamos ter previsto o que aconteceu, tanto mais que em 70 houvera a agressão a Conacry, organizada pelas tropas colonialistas, que atacaram Conacry, desembarcaram em Conacry, atacaram a casa em que nós vivíamos… E havia informações, vindas de países amigos, de algumas confissões de elementos infiltrados, que referiam esse plano, embora, creio, para mais tarde… Devíamos ter sido muito mais cuidadosos… Mas a personalidade do Amílcar também não ajudou, era um indivíduo que detestava andar com guarda-costas, não facilitou o trabalho da segurança. Nesse dia mesmo, estávamos os dois sozinhos…”
Ana Maria disse-o, julgo lembrar-me, com um pequeno sorriso. Como quem se desculpa de um erro – mas também como quem sente um certo orgulho por esse traço do companheiro, ainda que possa ter ajudado a conduzir à sua morte. Para a viúva de Amílcar, não há dúvida que a personalidade dele, o seu arreigado humanismo, facilitaram a tarefa dos seus inimigos:
“Recordo-me de alguns dos principais agentes infiltrados, que fizeram o trabalho da desmobilização, e depois foram desmascarados e presos… Ele queria-os libertar… Era contra que se guardasse um indivíduo preso mais que umas semanas…”
O seu repúdio pela violência (não se opusera ele sempre ao terrorismo e a qualquer ataque contra civis?), a sua tendência para o diálogo (não de declarou sempre pronto a negociar com Lisboa?) poderão ter precipitado também a sua morte, já que, frente aos que pretendiam amarrá-lo, resistiu, declarando preferir ser morto a ser amarrado: “É por isso mesmo que eu luto, para que deixemos de amarrar as pessoas… O ser humano não pode ser amarrado. Se há problemas, vamos sentar, vamos discutir, vamos conversar.” Nesse dia 20 de Janeiro, Ana Maria e a secretária de Cabral foram presas pelos atacantes da casa que tinha, até aí, servido de prisão aos infiltrados. Mas, diferentemente do que se passou com os restantes dirigentes “cabralistas”, não foram ameaçadas de fuzilamento no dia seguinte. Os atacantes queriam primeiro que lhes dessem toda a documentação pertencente a Amílcar Cabral.
Aristides Pereira, esse, foi amarrado e levado para um barco, e depois libertado pelos homens da Marinha da Guiné Conacry que, a bordo de um barco soviético, conseguiram apanhar o barco dos raptores antes que deixasse as águas territoriais guineenses. Para além delas, segundo Ana Maria, haveria um outro barco à espera: “Nesse barco estariam os colonialistas, e esse barco é que o levaria a Bissau.”
Os raptores eram gente do próprio PAIGC, virada contra a direcção do Partido por elementos infiltrados, manobrados pelos portugueses, muitas vezes para tal libertados das prisões, por vezes do próprio Tarrafal – que apareciam em Conacry, ou nas zonas libertadas, dizendo ter desertado, ou fugido das prisões, e que os combatentes recebiam de braços abertos.
“Era impossível dizer a um africano que se apresentava: ‘Vai-te embora, nós não confiamos em ti, és um agente da PIDE.’ Era impossível.”, explicou-me Manecas dos Santos. “Tínhamos de tomar as precauções necessárias, investigar aquilo que fosse possível, mas não podíamos recusar a vinda de nacionalistas que se queriam juntar a nós. Não era um procedimento aceitável.” Houve portanto infiltrações e, segundo Manecas, “tudo leva a crer que, na base dessas infiltrações, esteve o assassinato de Amílcar Cabral.”
“Esses agentes infiltrados trabalharam contratando os descontentes, os que tinham tido algum problema. Claro, não os mobilizaram dizendo que iam matar o Cabral, mobilizaram dizendo: ‘A luta vai acabar, Portugal está de acordo em entrar em negociações connosco, nós temos é que entregar os dirigentes, vamos entregar o Cabral aos colonialistas, vamos levá-lo para Bissau. A partir daí já será fácil entrar em negociações com Portugal.’”
A luta armada durava há já dez anos, a independência tardava a chegar, alguns deixaram-se seduzir pelas promessas de autonomia: “Eles receberam a promessa de que, se conseguissem raptar e entregar os principais dirigentes do PAIGC, o governo colonialista estaria de acordo em entrar em negociações com eles – mas sem PAIGC, sem Cabo Verde. Só a Guiné, com uma certa autonomia, sob a bandeira portuguesa. E eles seriam os dirigentes da Guiné.”
O Tarrafal foi um dos centros de recrutamento desses dirigentes guineenses. Foi aí que foi recrutado Momo Touré, um dos cabecilhas do golpe. Foi também na prisão que foi “virado” Rafael Barbosa, que fora presidente do Partido e que, depois de libertado, surgiria na rádio de Bissau a apelar ao fim da luta e a bradar vivas a Portugal. Se a sua participação no golpe nunca se provou, não se lhe retira, pelo menos, a responsabilidade de ter auxiliado a criar o clima que o preparou:
“Se a memória não me falha”, disse-me Ana Maria, anos depois, em Cabo Verde, “essa missão de raptar o Cabral e o Aristides Pereira tinha como nome de código Rafael Barbosa.”
Menos de um mês antes, em Lisboa, fora aprovado o novo Estatuto da Guiné. E de há muito que, em Bissau, a “psico” vinha fazendo propaganda visando separar guineenses e cabo-verdianos do PAIGC. Os que, em Conacry, escutavam a rádio de Bissau, ouviam programas em português, em crioulo, nas principais línguas da Guiné-Bissau, falando contra os cabo-verdianos: “Diziam que quem explorava o povo não eram os portugueses, eram os cabo-verdianos, quem ocupava os melhores postos da administração eram os cabo-verdianos… Todo esse trabalho era feito para pôr o guineense contra o cabo-verdiano…”
Antes disso, não houvera grandes problemas: segundo os relatos que ouvi, os cabo-verdianos que lutavam na Guiné tinham sido sempre bem recebidos, e as relações eram boas nas áreas libertadas. Mas era um facto que os cabo-verdianos, mercê da sua maior preparação, ocupavam, também na guerrilha, os principais postos, e a propaganda portuguesa esforçava-se por atiçar rivalidades:
“Eles faziam uma grande propaganda, diziam que nós queríamos entregar Cabo Verde para base da União Soviética e do bloco socialista… E todo esse trabalho para preparar o assassinato tinha como base: ‘Nós estamos de acordo em ouvi-los, em dar-lhes uma certa autonomia – mas sem Cabo Verde.’”
Ana Maria pensa que, a facilitar a operação, esteve o facto de Amílcar Cabral ser visto como um perigo, não só pelos portugueses, mas também por outros países europeus, teoricamente anti-colonialistas:
“É que alguns países africanos tornaram-se independentes, mas continuaram bastante ligados às potências colonizadoras, com as economias dependentes, de modo que quando surgiu um homem que dizia que a independência tem de ser também independência económica, que defendia uma independência real face às antigas ‘metrópoles’, pareceu-lhes um perigo, um perigo de perderem o que estavam a ganhar.”
Talvez por isso, quando conversei com ela, Ana Maria parecia acreditar na existência de cumplicidades na própria Guiné-Conacry. Mas não por parte do presidente Sékou Touré – antes de alguns ministros descontentes com a sua opção por uma via socialista.
Sékou Touré, Amílcar Cabral. Se o exemplo se espalhasse, que iria acontecer à África controlada e dependente – ou, simplesmente, pró-ocidental, de que o Senegal de Léopold Senghor era o grande exemplo?
Há por isso quem julgue que o golpe era dirigido, não só contra Amílcar Cabral, mas também contra Sékou Touré – o que implicaria outras cumplicidades ocidentais, outros aliados de Portugal, com cujos serviços secretos a PIDE/DGS sempre teve, aliás, boa colaboração. (O inspector da PIDE/DGS Pereira de Carvalho, em entrevista para a mesma série, disse-me claramente que os serviços franceses não tinham antipatia pela causa portuguesa, tal como o Pentágono e os serviços secretos da generalidade dos países europeus, e ajudavam no que podiam, através de troca de informações e trocas de serviços, acrescentando que, por exemplo, não podendo o Governo francês apoiar abertamente a política portuguesa, o fazia encapotadamente, através dos seus serviços secretos. E a tese defendida pela DGS era a de que Guiné e Cabo Verde eram um caso especial entre as colónias portuguesas, porque representavam a defesa do Atlântico Sul, não devendo por isso ser dissociadas da defesa do Atlântico Norte…) Mas há, também, os que dizem que Sékou Touré facilitou o ataque que custou a vida a Cabral. Quando com eles falei, Aristides Pereira e Ana Maria Cabral coincidiam nesse ponto:
“Talvez tenha havido algum descuido por parte das autoridades guineenses, mas em minha opinião, isso vinha de uma confiança demasiada na nossa organização, porque a guiné permitia algo que era exagerado, porque o PAIGC, na Guiné-Conacry, era um Estado dentro do Estado”, disse Aristides Pereira. “Estávamos ali instalados, fazíamos a nossa guarda só com os nossos homens… enfim, tínhamos uma liberdade de movimentos quanto a mim exagerada.”
“Éramos um Estado dentro do Estado”, corroborou Ana Maria. “Os carros do PAIGC que circulavam em Conacry, e de Conacry para a fronteira, tinham até uma matrícula especial, para evitar qualquer controlo, e tinham sempre prioridade absoluta.”
Para Pedro Pires, tudo, a manobra de divisão, o caso Rafael Barbosa, a tentativa de rapto, “fazem parte d BC da contra-subversão”- ele, que leu Bayo, que leu Guevara, diz: “contra-insurgência” – “mas chegaram atrasados. O Rafael Barbosa foi um mito do PAIGC, mas quando o puseram a falar na rádio já foi tarde de mais – nós já estávamos na luta há uns dez anos…”
Fosse ou não fosse o ABC da contra-subversão, o certo é que as autoridades portuguesas averbaram uma vitória, com a morte de Amílcar Cabral.
Uma vitória de Pirro? Foi o que pensei depois de ouvir Ana Maria:
“Em parte o plano falhou, porque as coisas continuaram, o PAIGC continuou, e os nossos amigos intensificaram o apoio, os nossos combatentes receberam armas mais sofisticadas, e a luta intensificou-se de forma aflitiva. Acho mesmo que houve uma mudança de atitude por parte dos combatentes, porque até aí eles lutavam pela liberdade do país, e a partir daí passaram a lutar com ódio. E se pegarmos nos comunicados de guerra de antes e depois do 20 de Janeiro, e compararmos a quantidade de militares colonialistas mortos, certamente iremos encontrar uma grande diferença.”
Entretanto falecido, um outro “histórico”, José Araújo, partilhava com Pedro Pires a opinião de que a operação de “contra-subversão” chegara tarde de mais:
“A perda de Amílcar poderia ter sido de facto um desastre, se nós estivéssemos noutra fase da luta. Mas as condições que vieram a determinar a derrota do colonialismo português já estavam criadas em vida do Amílcar. Um factor de extrema importância para a aceleração do termo da guerra foi a perda da impunidade de que beneficiavam os aviões portugueses. A tropa portuguesa só se movimentava com apoio aéreo, só podia aguentar as suas posições com apoio aéreo e logo que a Força Aérea deixou de ser invulnerável, estava determinado o termo da guerra. Ora já estavam reunidas as condições para essa mudança qualitativa no tempo de Amílcar. Evidentemente que ele deixou um grande vazio. Não é fácil substituir-se um homem como ele. Mas fez-se, e pensamos que isso foi possível ainda graças a ele, na medida em que ele soube preparar uma direcção. Trabalhou sempre em equipa, e por isso foi possível dar continuidade ao trabalho, e conduzir vitoriosamente a luta até ao final.”
Um ano e três meses depois do assassínio de Amílcar Cabral, dava-se o 25 de Abril. Seguir-se-ia a independência das colónias. Talvez nessa altura, alguns dos responsáveis militares portugueses, alguns mesmo dos que tinham estado por trás da operação que terminou com a sua morte, tenham sentido a falta de um interlocutor que muitos insistem em considerar um dos maiores dirigentes africanos de sempre: Amílcar Cabral, engenheiro agrónomo. 🍀🌴🍀
[Crónica de Diana Andringa publicada no jornal Público em Janeiro de 1993].